janeiro 30, 2006


















EU SEI QUE A GENTE SE ACOSTUMA.

Mas não devia.
A gente se acostuma a morar em apartamento de fundos
e a não ter outra vista que não seja as janelas ao redor.

E porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora.
E porque não olha para fora logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas.
E porque não abre as cortinas logo se acostuma acender mais cedo a luz.
E a medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.

A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora.
A tomar café correndo porque está atrasado.
A ler jornal no ônibus porque não pode perder tempo da viagem.
A comer sanduíche porque não dá pra almoçar.
A sair do trabalho porque já é noite.
A cochilar no ônibus porque está cansado.
A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.

A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra.
E aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja número para os mortos.
E aceitando os números aceita não acreditar nas negociações de paz,
aceita ler todo dia da guerra, dos números, da longa duração.
A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta.
A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.
A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita.
A lutar para ganhar o dinheiro com que pagar.

E a ganhar menos do que precisa.
E a fazer filas para pagar.
E a pagar mais do que as coisas valem.
E a saber que cada vez pagará mais.
E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas que se cobra.

A gente se acostuma a andar na rua e a ver cartazes.
A abrir as revistas e a ver anúncios.
A ligar a televisão e a ver comerciais.
A ir ao cinema e engolir publicidade.
A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.
A gente se acostuma à poluição.

As salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro.
A luz artificial de ligeiro tremor.
Ao choque que os olhos levam na luz natural.
Às bactérias da água potável.
A contaminação da água do mar.
A lenta morte dos rios.

Se acostuma a não ouvir o passarinho, a não ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães, a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta.
A gente se acostuma a coisas demais para não sofrer.

Em doses pequenas, tentando não perceber, vai se afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá.
Se o cinema está cheio a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço.
Se a praia está contaminada a gente só molha os pés e sua no resto do corpo.

Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana.
E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.

A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele.
Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se da faca e da baioneta, para poupar o peito.
A gente se acostuma para poupar a vida que aos poucos se gasta e, que gasta, de tanto acostumar,
se perde de si mesma.

(Marina Colasanti in Eu Sei Mas Não Devia)
(Foto: Kris Gebhardt)

39 Comments:

Blogger Inha said...

Eu também não, Maria.
Sou uma eterna insatisfeita.;)Mas olhando em nosso redor é isto que se vê...;)

30 janeiro, 2006 10:54  
Blogger deep said...

fazemos das rotinas da vida e do olhar as barras da nossa dimensão...mas o horizonte não pode acabar aí

30 janeiro, 2006 12:07  
Blogger robina said...

Eu bem luto contra ela mas a maldita está sempre à espreita e às vezes lá me vence.

30 janeiro, 2006 12:20  
Blogger aqui-há-gato said...

Como a gente se acostuma facilmente...
Somos fracos, ou pelo contrário, seres incomensuráveis na forma como nos adaptamos ás debilidades?

30 janeiro, 2006 12:20  
Blogger Inha said...

Em tento combater a minha da melhor forma que posso e sei, mas às vezes é um trabalho inglório!...

30 janeiro, 2006 12:30  
Blogger SoNosCredita said...

Não considero a rotina negativa. Acho mesmo que é necessária.
Só não nos podemos perder nela!

30 janeiro, 2006 12:51  
Blogger Lúcia said...

isto é tudo verdade. acostumamo-nos, muitas vezes para não sofrer.
outras vezes lutamos contra e a coisa até resulta.
e como sabemos que vai reultar?

30 janeiro, 2006 13:15  
Blogger Dinada said...

Eu cá todos os dias faço um disparate...
Wheeeeeeeeeeeeee!

Beijo Mana!

30 janeiro, 2006 14:40  
Blogger rules said...

Hábitos e rotinas, somos nós quem os faz... infelizmente muitas vezes caimos na monotonia...

30 janeiro, 2006 15:28  
Blogger Inha said...

Eu diria que é excesso de optimismo...

Deus te abençoe.;)

30 janeiro, 2006 17:01  
Anonymous Anónimo said...

muito bonito. as pessoas deixam-se levar pelo ritmo da vida em vez de tentar acelerar no caminho que é mais nobre.

30 janeiro, 2006 17:48  
Anonymous Anónimo said...

nao vas ainda!

30 janeiro, 2006 17:49  
Blogger pisconight said...

Eu invento as minhas próprias rotinas, mas não as consigo manter durante muito tempo.
"O Homem é um animal de hábitos!"
;)

PS:Além do poema também gostei muito da foto!!

30 janeiro, 2006 19:09  
Blogger João C. Santos said...

"A gente se acostuma a coisas demais para não sofrer."

Bem tento...quando não consigo a vida se acostuma a mim...e me mostra o erro em não ter sido eu a gritar...porque não posso eu gritar...
"vêm por aqui..."
Não vou, não vou...!!!
Vou criar a minha nobre rotina...ai se vou...
Um beijo...

30 janeiro, 2006 19:20  
Blogger VdeAlmeida said...

Sai-se da rotina mesmo fazendo uma asneira. Todos os dias de preferência :-)
Beijinho, Inha

30 janeiro, 2006 21:17  
Blogger isabel mendes ferreira said...

eu recuso-me....
não não me vou acostumar....

b.e.i.j.o.


a tocar a revolta.

30 janeiro, 2006 21:43  
Blogger Pseudo said...

Ora aqui está um poema que até eu, que sou avessa a poesia (não me mates :P) tenho que comentar: há muito aí mencionado ao qual me recuso a acostumar, mas é um facto que a luta contra os maus hábitos diários não é fácil, principalmente quando há terceiros envolvidos; passa também a ser a luta dos outros. Dar o grande passo para a frente não é para todos...não sei se é para mim.
Beijo. (hoje deu-me para isto...sorry)

30 janeiro, 2006 22:32  
Blogger Unknown said...

A quantidade de coisas a que estamos de tal modo habituados que apenas quando isso nos entra pelos olhos a dentro nos damos conta.

Gostei muito deste poema e dou por bem empregue o tempo na sua leitura.

marinheiroaguadoce a navegar

30 janeiro, 2006 23:55  
Blogger Inha said...

Bom dia a todos.;)


Pseudo, sabes, acho que há uma certa tendência das pessoas a confundir poesia com qualquer coisa que rime... corrige-me se estiver errada. (afinal a mulher das letras aqui es tu!:D). Agora a sério.;)

31 janeiro, 2006 09:15  
Blogger Mano 69 said...

Bom diiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiia!

Será o acostumar o arrumar a vida?

31 janeiro, 2006 09:24  
Blogger Inha said...

Bom dia, Mano Metralha!:D


Creio que o conformismo é por si o arrumar a vida. E quando se chega ao ponto de pensarmos que já não há volta a dar, aí sim, começa a ser o desprezo total pela vida;)

31 janeiro, 2006 09:40  
Blogger Pseudo said...

Ai, como é que sabes isso das letras? queres ver que eu sei quem és e tu sabes quem eu sou? lol

31 janeiro, 2006 10:22  
Blogger Inha said...

Pseudo, foi num post teu ou num comentário (não me recordo agora), em que falaste de composições dos teus alunos (dizias que nem eles faziam coisa tão má!LOOOOOL). Isso só veio confirmar as minhas suspeitas.:D:D
(mas ainda não nos conhecemos, creio eu...;))

Bom dia Daviduskas!;)

31 janeiro, 2006 10:48  
Anonymous Anónimo said...

bom dia alegria!

31 janeiro, 2006 11:04  
Blogger Inha said...

Bom dia Passarinho!:D:D

Neva por aí?;)

31 janeiro, 2006 11:10  
Blogger Toze said...

E como eu adorei te ver na Foto :)

31 janeiro, 2006 11:19  
Blogger Inha said...

Pois saíste-me pouco guloso, tu também...:D:D:D

31 janeiro, 2006 11:22  
Anonymous Anónimo said...

É... acustuma-se a isto, acustuma-se aquilo... e a originalidade? e fugir às rotinas?

também gostei da foto;)

31 janeiro, 2006 11:46  
Anonymous Anónimo said...

acustuma-se a isto,acustuma-se aquilo e ninguem te ACOSTUMA a ir à escola

31 janeiro, 2006 12:13  
Blogger Inha said...

O texto não é meu, Sr. Anónimo. E está tal e qual a escritora o fez.

Creio que a Edite Estrela chegou tarde a este post.

Mas agradeço que esteja presente em mais ocasiões, porque certamente oportunidades não lhe irão faltar para servir de corrector ortográfico.

Pena que tão distinta e culta personagem precise de se esconder atrás dos muros.

De qualquer forma, obrigada.;)

31 janeiro, 2006 12:55  
Anonymous Anónimo said...

O comentário não era para si mas para o que deixou o sr godi. No seu texto a palavra acostumar está bem escrita, ou ainda não reparou!! p.f. sr. godi não trate mal a sua lingua

31 janeiro, 2006 16:20  
Blogger Inha said...

Não, não tinha reparado. Até fiz refresh a ver se me teria enganado no blog...
Deixe lá o Godi. Acho que não fez por mal.;)Sabe, o que não falta por aí é gente a escrever muito bem, uns autênticos eruditos, portanto, mas conteúdo que é bom, não têm nenhum. Não que eu goste de ver a língua maltratada mas valeu pelo comentário, não pela construção da frase em si, se é que me faço entender.
Fique bem.

31 janeiro, 2006 16:47  
Blogger João C. Santos said...

Concordo contigo em não maltratar a língua...devia ter estudado mais...;)
boa tarde inha, um beijo...

31 janeiro, 2006 17:34  
Blogger Inha said...

Boa tarde, Joca.

Pois, mas não são maneiras de se dirigirem às pessoas, acho eu. A correcção podia ter sido feita de outra forma, mais educada e directa, se é que me faço entender.;)
Beijo.

P.S. Agora aguardo a visita da Srª Paula Bobone, que de certeza nos presenteará aqui com uma belíssima palestra sobre etiqueta e boas maneiras. A ver vamos.

31 janeiro, 2006 17:45  
Blogger João C. Santos said...

Não conseguimos corrigir alguém se nos tornamos iguais no discurso...

Um beijo...

31 janeiro, 2006 17:57  
Anonymous Anónimo said...

Exmo. Senhor Godi :

Tomei a liberdade de me dirigir à sua pessoa para lhe comunicar que a palavra acostumar ( de hábito )não se escreve com um "u" a seguir à letra "c" mas sim com um "o".
Creio que terá sido certamente um erro de digitação sua, uma vez que a letra "o" está muito perto da letra "u" nos teclados qwert.
Queira desculpar o meu reparo.

Com os melhores cumprimentos

Anónymus

31 janeiro, 2006 17:59  
Blogger Inha said...

Obrigada, Anónymus.
E um bom dia para si.

01 fevereiro, 2006 09:10  
Anonymous Anónimo said...

Caro(a) anónimo(a);

Muito obrigado pelo esclarecimento ;)
Foi um erro e não creio que tenha acontecido devido ao facto das letras se encontrarem próximas nos teclados qwert, foi mais irreflectido que outra coisa, lógico que sei que as palavras acostumar, costume, etc, se escrevem tal como as acabei de escrever :)

01 fevereiro, 2006 10:33  
Blogger Inha said...

Ai Daviduskas, Daviduskas.
Nem sei que diga.
Beijos, querido.

01 fevereiro, 2006 10:38  

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