agosto 25, 2006

















O LEPROSO

Sou o leproso e estou aqui. Não posso fazer muito mais coisas...

Já sabem: a carne apodrece-me e cai deixando feridas.

Cheiro mal.

Se pudessem ver-me, ainda tinha um resto de nariz para vos mostrar. E os olhos, no fundo de uns buracos que têm aumentado imenso.

Mas não seria agradável olharem para mim. Nem eu próprio olho para mim: deixei de usar espelho há muito tempo. Não é necessário, aliás, porque os outros leprosos quase todas as manhãs me vão contando as novidades.

Acontece, normalmente depois de acordarmos. É que para nós também existem a noite e o dia, e muitas vezes conseguimos mesmo dormir no chão duro destas cavernas.

Dão-me os bons-dias e dizem qualquer coisa como: "Olha, pá, já não tens a orelha direita". E a verdade é que nessas ocasiões nos rimos muito. Acho, até, que estamos proibidos de viver nas cidades dos homens porque não querem ver-nos rir.

O único riso verdadeiramente puro é o daquele que se ri de uma orelha que caiu. Mas poucos sabem disso.

Se caminhássemos pelas avenidas haviam de lembrar-se de que todas as orelhas inevitavelmente cairão. E não é agradável que recordem constantemente a alguém a ameaça cada vez mais próxima de um problema para o qual não possui solução.

Nós também não temos solução. Rimo-nos.

A solução está em não haver solução. E esta forma divertida de aceitarmos que a vida seja como é, este modo sossegado de cooperarmos com o inevitável, significa para nós uma serenidade que é um tesouro sem preço.

Para os outros, somos somente a lembrança desagradável de que não passam, também eles, de leprosos adiados e de futuros cadáveres; de que, sem dúvida, não terão neste lugar o seu paraíso, por mais que façam crescer o saldo da sua conta bancária.

Somos um grito em forma humana, um aviso irrecusável, uma censura que inevitavelmente se aloja no fundo das consciências.

E, por isso, fomos empurrados para estas cavernas. O que, de resto, não nos incomoda demasiado, pois todo o planeta é, de certo modo, uma caverna. Lembramos perfeitamente a frase da mulher santa de Ávila, quando disse que esta vida não pode ser mais do que uma má noite numa má pousada.

Não querem cruzar-se connosco. Desejam abraçar sem perturbações a voragem alucinante do seu caminho de prazer e vaidade.

E viemos para estas cavernas. Os idosos foram expulsos das suas famílias e encerrados em "lares". Planearam a eutanásia para se verem livres dos doentes. E abortaram aqueles que poderiam vir a nascer com deficiências. E muitos foram abandonados às suas dores na solidão de negros hospitais. E fizeram muitas outras coisas.

Mas, do fundo destes buracos, temos um segredo para lhes dizer.

Quando, num momento de lucidez, descobrirem que tudo é vazio, venham ter connosco. Quando não souberem como fazer dos filhos homens direitos, passeiem com eles por um cemitério, sentem-se com eles à beira de um doente que sorri no leito onde vai morrer, levem-nos aos lugares onde há crianças esfomeadas a brincar, descalças e alegres.

Sim, podemos contar-lhes o segredo da alegria, o segredo da bondade das coisas más, o segredo da plenitude que habita as coisas simples.

(Paulo Geraldo)














Com um pouco de agilidade mental e algumas leituras em segunda mão, qualquer homem encontra as provas daquilo em que deseja acreditar...


(Bertrand Russell)

18 Comments:

Blogger PreDatado said...

Se tu fosses o Bertrand dir-te-ia: nem mais!

25 agosto, 2006 15:57  
Anonymous Anónimo said...

Um texto comovente. Obrigada, Inha. E fiquei sem palavras. Não sendo leprosa, subscrevo tudo o que li. Porque será que temos que passar por provações difíceis para crescermos ??? Na facilidade, não se interioriza, não se aprende ? Que raio !!!

25 agosto, 2006 18:28  
Blogger Inha said...

Olá, Pré-Datado!:)

25 agosto, 2006 18:30  
Blogger Inha said...

Eu também não, mas este texto chocou-me pela lição de vida que é. Aplicou-se a um leproso, podia aplicar-se a todas as situações em que as pessoas são segregadas e se mantêm unidas na dor.
O ser humano é um bicho esquisito, Fresquinha, capaz de desprezar as pequenas coisas que no fundo constituem a felicidade, e entregar-se a delírios e fantasias sobre "estados de graça" que nunca vão acontecer. Só no dia em que perde essas pequenas coisas é que se apercebe quão frágil é a sua essência e como todas as suas pretensões se podem desmoronar em segundos como um castelo de cartas...;)

25 agosto, 2006 18:41  
Blogger ivamarle said...

um texto fabuloso, como já nos habituou P. Geraldo. eu considero (neste caso)que tenho alma de leprosa, em virtude deste parágrafo:..."A solução está em não haver solução. E esta forma divertida de aceitarmos que a vida seja como é, este modo sossegado de cooperarmos com o inevitável, significa para nós uma serenidade que é um tesouro sem preço."

Não foi preciso mais do que uma viagem às cavernas que tenho dentro de mim, para encontrar esse estado...

25 agosto, 2006 20:23  
Blogger Kaos said...

É usual dizer-se que com o mal dos outros podemos nós bem. Só a solidariedade pode contrariar o egoismo que normalmente rege as acções humanas. Para quem vive as dificuldades a crença numa divindade é muitas vezesa muleta que encontram para os ajudar a passar as dificuldades. Eu, que procuro as respostas mais no racional que no emocional não acreditos em Deuses
bjos

25 agosto, 2006 20:27  
Blogger Miguel said...

A Ironia do teu post leva-nos a pensar e reflectir sobre a Vida ...

O que fazer?
O que não fazer?
O bem e o mal!?

"Sim, podemos contar-lhes o segredo da alegria, o segredo da bondade das coisas más, o segredo da plenitude que habita as coisas simples."

Em todo o caso, os votos de um BOM FDS!

Bjks da Matilde

26 agosto, 2006 13:28  
Blogger o alquimista said...

Olá minha querida, dramáticamente irónico o teu texto...a vida sensiente veste-se de roupagens e cruéis conceitos nem sempre compreendidos neste plano...o teu texto daria uma peça cheia de humanidades...

Mágico beijo

26 agosto, 2006 16:27  
Blogger kimikkal said...

a foto da cruz é sublime, "casa" muito bem com o texto por baixo.

26 agosto, 2006 17:50  
Anonymous Anónimo said...

muito bom.

27 agosto, 2006 17:21  
Blogger Mac Adame said...

O texto de Paulo Geraldo tem substância e qualidade literária, na minha humilde opinião. Mas então a frase de Bertrand Russell, é simplesmente das melhores que já li. E tu jogaste bem com a mistura de tudo isto com as imagens a propósito. Um bom momento blogosférico. No entanto, quando te apetecerem temas menos sérios, sente-te à vontade para publicar mais fotografias como a de 23 de Agosto. Gosto desta diversidade.

27 agosto, 2006 22:23  
Blogger Inha said...

Bons dias!:)

Iva, agora que me deixou sem palavres foste tu!;)Simplesmente bem visto!!!

28 agosto, 2006 11:21  
Blogger Inha said...

Kaos, e demónios para atribuir culpas nas adversidades. Alguém escreveu um dia

"Os navios estão a salvo nos portos, mas não foi para ficar ancorados que eles foram criados"

Creio que se a vida não fosse um risco não faria qualquer sentido termos nascido.

BeijInha

28 agosto, 2006 11:35  
Blogger Inha said...

" o segredo da plenitude que habita as coisas simples", Miguel. Creio ser exactamente aqui que reside a diferença entre os delírios de qualquer mortal e a felicidade dos simples. Acho eu.

beijInha

28 agosto, 2006 11:39  
Blogger Inha said...

Olá meu querido Alquimista. Ainda bem que já voltaste...;)

BeijoquInha Gorda

28 agosto, 2006 11:41  
Blogger Inha said...

Kimi!!!!!! Parabéns a você
Nesta data querida
Muitas felicidades
Muitos anos de vida!!!

Mil beijInhas


:D

28 agosto, 2006 11:43  
Blogger Inha said...

Obrigada, Cidadão!:)


Bem vindo!;)

28 agosto, 2006 11:44  
Blogger Inha said...

Mac, quanta honra!!!:D))))) Assim, deixas-me sem argumentos... :D))))))

(como sempre, aliás)

28 agosto, 2006 11:48  

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